Friday, December 01, 2006

A definição de David Kunzle.

A banda desenhada sofre de muitos defeitos enquanto disciplina de "apreensão do universo", sendo uma delas uma deficiência de dieta em pensamento a quase todos os níveis - institucional, editorial, sociológica, histórica, estética, filosófica - e isto independentemente dos nomes brilhantes ou dos rasgos súbitos que pontualmente surgem no seu mundo.
Se a banda desenhada deseja ser vista como as outras artes, não deve temer nada nem ter vergonha da sua ontologia, do que ela própria é (e não faltariam exemplos de "boas bandas desenhadas", "obras-primas", "de primeira água", "universais"), mas tem de ser capaz de deixar de olhar para o seu próprio umbigo (reduzido a meia-dúzia de exemplos ou de "gostos" pessoais espartilhados) e levar a sério o papel social que cumpriu, cumpre e poderá cumprir, e aceitar o facto de que ainda se mexe somente num muito confinado curral da cultura.
Um dos homens que melhor contribuiu para minorar essa deficiência de dieta foi o historiador norte-americano David Kunzle (na foto), com a publicação da sua trilogia The History of Comics (ainda que estejamos à espera do terceiro volume há cerca de trinta anos...). Kunzle é, de facto, um historiador, e de arte, no less! A existência dos métodos próprios (ou além deles) dessa disciplina são empregues nessa obra, e o facto de estar relacionado com o Instituto Warburg é um grande peso no currículo e na metodologia (falaremos de Warburg mais tarde). Aqui segue a definição que ele dá de comics (a tradução é da minha responsabilidade, como todas as outras, mas nesta deixo alguns dos termos originais, outras traduzo mas indico qual o termo, etc.; essas flutuações são propositadas, para que entendam melhor ou mais exactamente o que o autor expressa e explicita). Entre parêntisis rectos, são notas ou explicações da minha responsabilidade.

Banda Desenhada (Comic strip) – uma definição.
Este livro pretende ser uma história ou uma pré-história de um fenómeno artístico que é parcialmente pictórico e em parte literário, e conhecido no mundo anglófono de modo variado, como “comic strip”, “comic”, “comic book”, “strip cartoon”, e “the funnies”. De todos estes termos, “comic strip” é o mais comummente empregue para as tiras dos jornais; os britânicos também usam frequentemente “strip cartoon” (i.e., tiras desenhadas no estilo dos cartoons). Um “comic book” é um livro [revista ou livro] de “comic strips”. A terminologia sugere que o conceito de “comic” (cómico) é inseparável do da “strip” (tira), o que, até certo ponto, enganador. A palavra, ou o seu equivalente, é neste sentido particular aos países de expressão inglesa: os franceses, com a sua precisão característica, dizem bande dessinée (tira desenhada), os alemães (quando não usam o termo americano) Bilderstreifen ou Bildergeschichte (picture strip, picture story), e os italianos têm o termo fumetto. Esta última palavra é particularmente inapropriada de uma perspectiva histórica, uma vez que os balões de fala (fumetto significa literalmente “nuvem de fumo”) não são uma característica definitiva da comic strip, nem sequer nos tempos modernos.
Assim, é apenas em inglês que se insiste que as “tiras desenhadas” são cómicas. Por volta de 1900, quando começou a consolidar o seu lugar nos jornais de Domingo [as "Sunday Pages" eram gloriosamente impressas quatro cores; aqui está um exemplo com um episódio de Terry e os Piratas, de Milton Caniff, de quem se fala aqui], a banda desenhada era sem dúvida apresentada como um entretenimento leve, uma função que havia herdado do século XIX e que manteria durante larga parte do século XX. Mas bastará um olhar panorâmico por sobre as imagens deste livro para se demonstrar que as mais antigas tiras não tinham nada de cómico, quer nos seus estilos quer nos seus conteúdos. E qualquer pessoa minimamente familiarizada com as páginas de “banda desenhada” nos jornais americanos dos nossos dias entenderá que as tiras francamente humorísticas são equivalentes, em termos de quantidade, àquelas que têm histórias contadas num estilo realista e mais lúgubre. A tira contemporânea americana, em certa medida, voltou às fontes: sendo apenas parcialmente cómica, o seu factor de atracção aumentou, e em termos de conteúdo ideológico parece ter retomado de certa forma o seu papel original em providenciar às pessoas uma propaganda moral e política. Não há espaço para grandes dúvidas de que a combinação actual do cómico e do não-cómico nas “comic strips” possui uma influência social bem maior do que qualquer um desses factores isolados.
A pré-história de que trataremos revela como a verdadeira “comic strip” não surgiria até ao momento em que a propaganda pictórica e o cartoon social se tornaram inteiramente cómicos no seu estilo, para ser mais preciso, na Inglaterra dos finais do século XVIII [de que se apresenta aqui um exemplo, mas holandês, uma alegoria crítica às brutalidades dos espanhóis, de 1623]. Neste momento do seu desenvolvimento, todavia, dou preferência à expressão “tira caricatural” para que a possa ligar com a revolução estilística na arte gráfica popular conhecida como caricatura. Jamais me refiro à tira pré-caricatural (i.e., antes de 1780) como “comic strip”, mesmo quando contenha elementos de humor. No geral, empregarei os termos “tiras narrativas” ou “sequência narrativa”, “história em imagens” (picture story) ou “sequência narrativa” (dependendo do formato implicado) para que possa sublinhar o papel narrativo do meio, que considero fundamental.
Em todo o mundo ocidental, a banda desenhada tornou-se uma forma maior da comunicação de massas, uma força poderosíssima de moldagem da opinião pública, uma linguagem internacional (muitas das tiras são traduzidas simultaneamente em várias línguas) que é entendida e apreciada quer pelos literatos quer pelos não-literatos. Há sinais de que também as repúblicas socialistas, como a russa e a chinesa [v. exemplo, trad. italiana], começaram a explorar este meio. Não será necessário dizer que as histórias em imagens são apelativas junto aos semi-educados; e estou convencido (apesar de não o poder facilmente provar) de que existem muito poucas pessoas educadas, pelo menos nos Estados Unidos, que não tenham sequer olhado com algum interesse e divertimento para uma banda desenhada. Alguns intelectuais são praticamente escravos de certas séries, e não necessariamente aquelas de maior conteúdo intelectual. A banda desenhada atravessa as várias fronteiras sociais e educacionais dos nossos dias, tal como o seu antecessor o fizera nos séculos anteriores. Mas aqui reside um paradoxo: “De todas as artes animadas (lively), a Banda Desenhada é a mais desprezada e, se exceptuarmos o cinema, a mais popular” [cit. de Gilbert Seldes, The Seven Lively Arts; famoso livro do crítico norte-americano, publicado em 1924. As artes indicadas são: a Banda Desenhada, os Filmes, a Comédia Musical, o Vaudeville, a Rádio, a Música Popular e a Dança - não confundi-las com as "Sete Artes Liberais"].
De uma forma lata, os críticos e os académicos pura e simplesmente ignoram a banda desenhada e a sua história. Não me parece que os sociólogos e os críticos dos mass media (meios de comunicação social) tenham negado a importância social da banda desenhada; no entanto, nenhuns deles lamentaram a inexistência de uma história desse tema. O historiador de arte ou de literatura académico prefere, aparentemente, ignorar as bandas desenhadas anteriores ao século XX, enquanto factor do desenvolvimento do meio popular [Kunzle dá e comenta exemplos]. Usualmente, costuma defender-se a publicação de volumes tão grandes como este com a reivindicação que vêem suprir uma necessidade académica não só muito vincada, como de longa duração. Não a farei.
Antologiadores de livros de banda desenhada do século XX, longe de deplorarem a ausência de um estudo deste período mais antigo, contentam-se com a apresentação, numa meia-dúzia de parágrafos ou de páginas, a sua própria história enlatada que mergulha ao acaso na história geral da arte, comic e narrativa. Ou então o leitor é deixado na impressão de que pura e simplesmente não existe história da banda desenhada antes dos anos 90 do século XIX. Ambas as atitudes são erróneas, e ambas, estou em crer, provêm de uma simples falha de definição. O que queremos dizer com “banda desenhada”? É algo curioso, por exemplo, que muitos autores pareçam devotos aos balões de fala, o qual não entendo como sendo um ingrediente essencial da banda desenhada; para além disso, estes autores associam a invenção deste mecanismo antigo com Hogarth [aqui, um exemplo do ciclo de seis gravuras, A Harlot's Progress, sendo esta a 2ª], que jamais sonharia no uso de uma coisa tão estranha nas suas histórias em imagens.

Percursores surpreendentes são então avançados para o artista moderno da banda desenhada [modern strip cartoonists]. Uma monografia de John Paul Adams sobre esse determinado moderno, Milton Caniff, é subintitulada “O Rembrandt da Banda Desenhada”. Rembrandt, enquanto pai da arte, é apenas um dos muitos nomes, não menores. Adams, na total ignorância dos empregos mais comuns da disciplina da História da Arte, tais como a distinção entre “cartoon” e “comic strip”, escreve que “existem cartoons celebrados de Leonardo da Vinci, Rafael, Miguel Ângelo, tal como de Rembrandt”. O cartoon (piada) mostrando o americano em frente da famosa tapeçaria dos cartones [Kunzle chama a atenção para um erro comum (em língua inglesa) em confundir os cartoons – do italiano carta, cartone, que significavam os desenhos em grande escala que eram depois transferidos para outras superfícies – com o seu significado mais moderno, consolidado em 1843 pela revista inglesa humorística Punch] em tapeçaria de Rafael (desenhos coloridos e grandes), no Museu Albert e Victoria [aqui apresentam-se o cartone e a tapeçaria], dizendo “o desenho é bom, mas não percebo a piada”, reflecte presumivelmente uma experiência real. O que acontece tipicamente é que um escritor, mesmo que não alegue que os grandes mestres do Renascimento italiano tenham feito um grande contributo para a banda desenhada, acaba por enobrecer o seu passado através dos grandes “monumentos” de toda a História da Arte. Becker abrange desde as Tapeçarias de Bayeux às ilustrações de livros de Rowlandson, della Corte cita a coluna de Trajano, os frisos do Parténon, e os frescos de Giotto como antepassados da banda desenhada, e considera as inscrições em alguns mosaicos do século IX e as filacteras judaicas como protótipos imediatos do balão de falas. Uma publicação italiana recente, a Primi Eroi, adiciona a esta árvore genealógica objectos rebuscados como os rolos japoneses e os códices mexicanos. Um museu da banda desenhada (e que deveria ser instalado absolutamente) rivalizaria, de acordo com estas definições, em termos de amplitude, com os museus Britânico e o do Louvre em conjunto. A revista Time deu o seu contributo a este estado do conhecimento sobre a história da banda desenhada: “Historiadores conscienciosos gostam de traçar a banda desenhada (strips) até aos papiros egípcios, à cerâmica grega, às tapeçarias medievais, às ilustrações de Hogarth sobre a vida do bas-fond do século XVIII londrino; mas como verdadeiro ponto pragmático, a banda desenhada moderna não surgiria antes dos anos 1890...” [artigo de Abril 1965].
Para o nosso trabalho presente, proporia uma definição na qual “banda desenhada” de qualquer período e de qualquer país, teria de cumprir as condições seguintes: 1. tem que existir uma sequência de imagens separadas; 2. tem que haver uma preponderância das imagens sobre o texto; 3. o meio em que a banda desenhada (strip) aparece e para a qual foi originalmente feita deve ser reproduzível, isto é, numa forma impressa, um meio de comunicação social; 4. a sequência deve contar uma história que é, a um só tempo, moral e tópica. Examinaremos agora brevemente as implicações destes quatro pré-requisitos, tendo em conta o período que vamos estudar.

1. Uma sequência de imagens
A primeira, e mais óbvia, característica que distingue uma banda desenhada é a sequência de imagens. Uma “comic strip” ou um “strip cartoon” não é o mesmo que um “cartoon”, o qual significa uma piada gráfica ou uma ilustração humorística.
Um “cartoon”, por mais de um século, significou essencialmente qualquer desenho humorístico sobre qualquer tema, impresso numa revista ou num jornal. Apesar da banda desenhada (“comic strip” ou “strip cartoon”) poder ser vista como uma sub-espécie do cartoon, o seu modo operativo, o seu apelo, e até certo ponto o seu estilo, são diferentes dos do cartoon. Os cartoons singulares [aqui, um exemplo de Kurt Vonnegut] aparecem com regularidade nas secções de banda desenhada dos jornais norte-americanos, mas são facilmente distinguíveis, e estão em minoria, em relação às bandas desenhadas.
O número de imagens numa sequência podem variar consideravelmente, mas parece que as quatro são uma [e apresenta-se aqui um dos seus exponentes: Peanuts, de Charles Schulz, que se encontram a meio-caminho do cartoon singular e da tira narrativa de continuidade. Estas últimas aparecem de um modo serial nos diários, usualmente com quatro cenas por dia; outras sequências mais integradas surgirão nos comic books. No meu estudo dos antepassados da strip moderna, utilizei as quatro cenas como o limite mínimo, ainda que as piadas (joke strip) e a tira serializada dos nossos dias sejam por vezes reduzidas a três ou mesmo duas cenas. Não há praticamente limite por cima. As tiras serializadas dos nossos dias, que fazem desenvolver a mesma história a cada dia, durante três meses, chegam a uma média aproximada de quatrocentas cenas. No estudo presente, que cobre um período em que as tiras desenhadas ainda não existiam, a maior das histórias tem cinquenta e duas cenas.

2. Preponderância das imagens sobre o texto
Apesar da banda desenhada ser essencialmente uma forma híbrida, parcialmente verbal e parcialmente pictórica, esta última tem de ser considerada como a sua característica fundamental. Uma banda desenhada pode constituir-se somente de imagens; é o que acontece com muitos casos actuais, e muitas delas também o eram em tempos mais remotos; mas não pode ser dominada pelo texto. Há, porém, uma distinção entre as imagens que ilustram um texto e as imagens que são esclarecidas por um texto. É muitas vezes difícil determinar, através de uma instância específica, a relação exacta entre a imagem e o texto e qual deles veio primeiro, mas é normalmente claro qual deles é que carrega o peso da narrativa. Excluí quaisquer bandas desenhadas nas quais as legendas (captions) ocupam um espaço maior do que a imagem. [como considererá Kunzle esta prancha/página, retirada de Les Quatre Fleuves, escrita por Fred Vargas e desenhada por E. Baudoin?]

Estudiosos da banda desenhada moderna parece sentirem que a demarcação do texto em balões de fala é uma característica essencial da banda desenhada: mas há muito poucas instâncias dos balões de fala nas bandas desenhadas antigas (earliest strips), pois as personagens representadas não falam; elas mimam acções, que são explicadas e comentadas, se necessário, por legendas colocadas ora directamente acima ou (o que é mais comum) directamente abaixo da imagem. As palavras que eram utilizadas editorialmente para preencher uma falha narrativa ou prover os leitores de um rápido resumo eram usualmente colocados dentro da moldura das imagens. Artistas do período depois do Renascimento, porém, descobririam que esse resquício e comum prática medieval era um método inestético e primitivo de contar histórias, e preferiram restringir o texto (se é que tinha de haver texto) num espaço que lhe fosse próprio, onde não se iria imiscuir no espaço pictórico. O balão de fala deriva dos rolos que os profetas costumavam segurar na arte medieval, e como surgiriam ainda nas tiras arcaicas russas. Os balões e os rolos tornar-se-iam cada vez mais populares durante o século dezassete, especialmente no sofisticado broadsheet [folhas soltas em largo formato, os primeiros “jornais”; apresenta-se acima um exemplo de Jan Vandergucht, um trabalho de 1733] inglês, mas sempre em conjunção com, e não em lugar de, as legendas ou os comentários. Até mesmo nos nossos dias existem artistas da banda desenhada (notavelmente Jules Ffeifer [v. exemplo imediatamente abaixo]) que, por razões estéticas, evitam colocar os diálogos dentro de balões. Não há nenhuma razão, portanto, para ver o balão como um ingrediente definitivo da banda desenhada.
O conteúdo de uma página que apresente uma banda desenhada pode incluir um corpo bastante extenso de comentários em letras impressas, acrescentados a ou no lugar das legendas. Na maioria dos casos, todavia, este tipo mais longo de comentários podem ser vistos como uma junção dispensável, o que ajudará a compreender as imagens, mas não lhes é essencial. Há muitos outros mecanismos que empregam letras impressas, desde etiquetagens internas que identificam as pessoas ou os lugares, a inscrições que funcionam como legendas, agrupadas abaixo para facilitar a impressão. As várias combinações das letras impressas e das imagens gravadas, que se encontra nas antigas broadsheets, são inúmeras, e não há razão nenhuma para as categorizar. O ponto mais importante é que a parte pictórica seja a mais fundamental.

3. Um meio de comunicação social
Será óbvio que é a distribuição em massa das bandas desenhadas dos jornais e dos comic books o que as torna tão poderosas enquanto influência cultural. A banda desenhada é, e só pode ser, o produto da impressora. Não existia sequer aquilo que chamamos de meio de comunicação social (mass medium), tal como entendo o termo, antes da invenção da impressão. Isto não quer dizer que no mundo antes de Gutenberg não existisse a noção de propaganda dirigida a grandes números de pessoas, ou de que as imagens e as palavras não pudessem influenciar radicalmente a opinião pública e os acontecimentos políticos, ou de que a coluna de Trajano ou as Tapeçarias de Bayeux [ambos aqui representados] não tivessem como objectivo espalharem por toda a Europa a reputação militar, respectivamente, dos romanos e dos normandos. Mas mesmo que a coluna de Trajano pudesse ser “desenrolada”, e assim se pudesse vê-la para além da primeira porção, e mesmo que a Tapeçaria de Bayeux tivesse tivesse sido mostrada numa igreja ou num mercado público, sob a vista de todos, ainda assim não pertenceriam à ordem dos órgãos de comunicação.
Um órgão ou meio de comunicação social é móvel; desloca-se até ao homem, não é o homem que se desloca até ele. Apesar de se dirigir a um público em geral, convida à posse da parte de um só indivíduo. Um papel impresso, pregado à parede de uma estalagem, permite ao leitor identificar-se com o que diz, de um modo bem diverso do que aconteceria com uma pintura oficialmente encomendada e permanentemente em exposição nas paredes de uma igreja. Além disso, se uma só pessoa poder ter essa impressão, agarrando-a nas suas mãos, e passá-la a um amigo, a sua participação no conteúdo aumenta correlativamente. Ainda que as raízes da arte narrativa se prolonguem, nos vários meios, até à Idade Média, ou mesmo antes, a banda narrativa, enquanto modo de comunicação popular, não se pode arrogar de antedatar a invenção da máquina impressora.


4. Narrativa moral e tópica
Seja ela considerada moralmente corruptora ou profícua, progressiva ou reaccionária, a banda desenhada moderna tem, sem quaisquer dúvidas, um conteúdo moral forte. Também nos séculos mais anteriores, a esmagadora maioria do material impresso tinha intenções fundamentalmente morais. Há uma certa quantidade de material gráfico, tais como ilustrações de processos técnicos e gravuras de cerimónias da corte, que cumpre os três pré-requisitos que delineei acima, mas sem serem morais no sentido exacto do termo. Esses “gráficos” técnicos não serão alvo da nossa atenção. Excluiremos não só narrativas técnicas, mas também a maior parte das narrativas religiosas, uma vez que a sua moralidade é, caracteristicamente, mais tradicional do que tópica. Algumas bandas desenhadas dos incunábulos recontam a vida de Cristo, da Virgem ou dos santos, os quais obviamente imitam os altares subdivididos da Baixa Idade Média. Estes não são considerados produções originais para a máquina impressora, e o seu conteúdo moral imediato não pode ser comparado com o das bandas desenhadas que não estão dependentes dos textos cristãos. A moralidade social é bem mais influenciada pelos acontecimentos seus contemporâneos; uma propaganda efectiva está sempre associada à possibilidade de uma mudança social e política rápida. Se uma impressão é tópica, torna-se num instrumento de propaganda social e política, e por isso reveste-se ipso facto de um significado moral. Essa é a razão pela qual não só eliminamos as histórias religiosas, mas também as histórias tradicionais, todo aquele material que é sedutor não por ser novo mas precisamente por ser velho. No entanto, encontrei um número surpreendentemente baixo de tiras impressas antigas (o mesmo não se passando com livros ilustrados) que relatem contos populares tradicionais. De acordo com as provas existentes, não seria senão no final do século XVIII, e sobretudo no século XIX, que se desenvolveria realmente um mercado verdadeiro na Europa para tiras de imagens (picture strips) contando relatos tais como o de Tom Thumb [equivalente ao Polegarzinho] ou Till Eulenspiegel [ver exemplo a abrir o parágrafo]. Apenas incluí um exemplo de um conto moral (cautionary tale) tradicional, pela razão de que o seu estilo e conteúdo coincidem com algumas das verdadeiras tiras tópicas.
Com a excepção de um conjunto de tiras baseadas na iconografia tradicional cristã, a maioria dos mais antigos exemplos estão relacionados com acontecimentos políticos específicos, ou têm um contexto sócio-histórico e geográfico preciso. Estas histórias são morais de um modo em que um conto tradicional não o pode ser, pois elas apelam a uma tomada de acção social e política: resistir a um tirano ou abandonar uma vida de vícios. São contadas no presente, e exigem uma mudança imediata. A tira narrativa essencialmente popular não recorre tanto aos exemplos dos santos cristãos ou dos heróis lendários mas apresenta contemporâneos facilmente identificáveis que poderão ser celebridades políticas reais, ou então tipos ficcionais nas quais o leitor se pode reconhecer a si mesmo facilmente, ou aos seus patrícios.

A qualidade moral das tiras é directamente proporcional à força do elemento narrativo. Narrar é, em primeiro lugar, polarizar uma sequência de acontecimentos num Antes e num Depois, num Então e num Agora, numa Causa e numa Consequência – num Crime e num Castigo. Este método antitético, que se baseia numa velha tradição didáctica e retórica, é muito comum na literatura popular em geral [se bem que seja discutível, não vejo como - e isto não obstante o que o próprio autor tenha dito - o trabalho de Rudolphe Töpffer, como M. Pencil, aqui exemplificado, possa ser visto como "moral", uma vez que os acontecimentos se sucedem, os mal-entendidos se encaixam, sem que com eles se restaure a "ordem" do mundo, nem que se "melhore" a sua condição]. Muitos dos contos folclóricos podem ser reduzidos a essa fórmula de “crime e castigo” ou “recompensar a virtude”. E neste ponto deparamo-nos como uma propriedade particular às imagens, e que não é partilhada pelas palavras, e que permite a esta fórmula dúplice ser condensada numa só imagem, um só motivo gráfico. […] Um cartoon tende a funcionar desse modo “condensado”; a banda desenhada faz o contrário, fraccionando a fórmula nas suas partes constituintes e explicando-a, verbalmente, através de uma sequência linear. O número de imagens geradas dessa forma é menos importante que a sua interdependência. Um contraste simples de duas imagens pode transmitir uma moral bem mais potente, e assim contar uma história mais poderosa, que uma sequência maior que apresenta uma decomposição entre o princípio e o fim. As impressões de intuito moral mais antigas são prósperas em contrastes, dos quais apresento alguns exemplos, para que possa indicar com exactidão a procedência, e a moralidade essencial, de uma sequência narrativa que trata um tema comparável. O contraste reside no centro quer do elemento moral quer do elemento narrativo das bandas desenhadas mais antigas (early strip).
David Kunzle, “Introdução”, de History of the Comic Strip. Vol. I: The Early Comics Strip. Narrative Strips and Picture Stories in the European Broadsheet from c. 1450 to 1825. University of California Press: Berkeley/Los Angeles/London 1973; pp. 1-4. A tradução é minha.