Aproximações ao "ponto de intersecção".
Se queremos encontrar um ponto de partida, mas sabemos que podemos sempre ir mais atrás;
se aceitarmos o facto de que não obstante existirem variadíssimas definições, deveremos antes eleger uma explicação que tome em conta uma progressão e metamorfose histórica;
se tomarmos como base a ideia de que a banda desenhada (mais que a ilustração) envolve uma mescla, uma simbiose, uma conjointure, de texto e imagem, logo que poderemos "roubar" métodos e modelos de várias disciplinas;
se nos dermos conta de que, de facto, é necessário não só um trabalho de pesquisa aturado e informado, como alguma capacidade de reflexão:
aceitaremos o facto de podermos encontrar apoio noutras paragens menos habituais dos "amantes da bd".
Walter Benjamin é um pensador muito famoso, um crítico filosófico que dedicou grande tempo da sua vida às artes, sobretudo àquelas que eram "novas" no seu tempo (o cinema, sobretudo, o qual, apesar das diferenças em relação à banda desenhada, continua a prover-nos de excelentes estudos comparativos). Escreveu muito, e bem, e morreu cedo demais. Como em muitos outros casos, a repercussão das suas ideias são bem posteriores ao período em que estava vivo, apesar dos vivos diálogos que estabeleceu com outras pessoas do seu tempo, e que lhe sobreviveriam. É bem possível que o seu "livro" mais famoso seja A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, escrito em 1936, mas cuja versão que nos é hoje acessível seja a, melhorada, de 1939. A sua tradução portuguesa pode ser encontrada em Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, publicado pela Relógio d’Água (Lisboa 1992), apesar de se adivinhar uma nova, mais cuidada, tradução, pelo Prof. João Barrento (pela Assírio & Alvim).
Nesse livro, discute-se o facto da arte sua contemporânea viver num novo meio de produção e distribuição, apagando assim a necessidade de um "original", na medida em que a sua fruição, digamos, completa, total, apenas acontece na presença da própria cópia. Ou melhor, é a cópia a obra de arte que deve ser "consumida". Isto acontece com o cinema (vemos uma cópia de celulóide ou, agora, digital), com os livros e, naturalmente, com a banda desenhada [isto não invalida que não exista, em relação à banda desenhada, "arte original", ou que ela não seja "banda desenhada", mas lá iremos; e esta é uma das razões pela qual Kunzle indica a sua terceira condição na definição].
Essa alteração do "consumo", da "fruição", implica também que a atitude perante essas obras de arte se altere... W. Benjamin cunhou o conceito de "aura", para explicar uma espécie de distância que estabelecemos entre nós e a obra de arte "clássica". Uma espécie de respeito, de assombro. Com o advento das artes que vivem na própria condição de serem reprodutíveis (copiadas) através de técnicas, as cópias são antes passíveis de uma aproximação. Não é que desapareça a aura; mas ela inverte-se: o filósofo fala da transformação de uma atitude "cultual" para uma de "exposição". De uma distância, passamos a ter obras de arte que são fruidas com uma intimidade diferente. Ambos os tipos de arte existem contiguamente, um não desapareceu pela presença do outro, mas sem dúvida que a primeira espécie de arte - a pintura, por exemplo - se alterou profundamente com a presença das outras artes.
Nessa obra, na secção XIV, há uma nota (v. pg. 105), que copio aqui na íntegra. Indico-a porque, se bem que apelar simplesmente para a autoridade pareça uma forma de escapar a uma explicação mais pessoal e abrangedora, as palavras de Benjamin ajudam profundamente a "tomar a decisão" de escolher um único autor como "inventor" da banda desenhada, como veremos. A razão reside no facto desta nota apontar uma maneira de sabermos como dizer que algo é uma "nova forma de arte". E tal como num prisma temos um raio de luz que se divide em várias cores, também poderemos encará-lo ao contrário, e ver como as várias cores são as diferentes percepções de um fenómeno que é unido. É como se as cores pudessem ter existido sempre, de uma maneira ou de outra, mas subitamente vemo-las a convergir num mesmo ponto, passando a ser um só feixe (que é Töpffer).
“A obra de arte”, diz André Breton, “só tem valor na medida em que vibrem nela os reflexos do futuro”. De facto, qualquer forma de arte desenvolvida situa-se no ponto de intersecção de três linhas de desenvolvimento. A técnica, em primeiro lugar, trabalha no sentido de uma determinada forma de arte. Antes de surgir o filme, havia aqueles livrinhos de fotografias cujas imagens, através da pressão do polegar, passavam muito depressa, para o observador, um combate de boxe, ou um jogo de ténis [v. imagem do kineográfo]; havia as máquinas dos bazares que, dando a volta à manivela, mostravam sequências de imagens. – Em segundo lugar, as formas de arte tradicionais, em determinadas fases do seu desenvolvimento, esforçaram-se por obter efeitos que, posteriormente, foram facilmente obtidos por novas formas de arte. Antes do cinema se impor, os dadaístas procuraram, através dos seus espectáculos, levar ao público um movimento que Chaplin provocou com toda a naturalidade. – Em terceiro lugar, mudanças sociais, que frequentemente passam despercebidas, suscitam uma mudança na recepção, que beneficia novas formas de arte. Antes do cinema ter começado a criar o seu público, já o público se reunia no ‘Kaiserpanorama’ para a recepção de imagens (que tinham deixado de ser imóveis) [v. imagem]. O público ficava em frente de um biombo no qual estavam instalados estereoscópios atribuídos a cada um dos espectadores. Nestes estereoscópios surgiam imagens, uma a uma, que persistiam um instante para depois dar lugar às seguintes. Edison ainda teve que trabalhar com meios semelhantes (antes de se conhecer a tela de cinema e o método da projecção), ao apresentar as primeiras fitas de cinema a um público pouco numeroso que fixava o olhar num aparelho em que se desenrolava a sucessão das imagens. – Aliás, na instalação do ‘Kaiserpanorama’ é expressa muito claramente uma dialéctica do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema ter tornado colectivo o visionamento de imagens, antes do estereoscópio, surge o visionamento individual, rapidamente ultrapassado, com a mesma intensidade que outrora tinha suscitado a contemplação da imagem de Deus pelo padre, na sua cela.
Comentário:
Explicando ainda doutro modo: a esmagadora maioria das pessoas gosta e prefere soluções unitárias e simples, mas elas, na esfera do humano e das artes, raramente existem. A falácia de acreditar que é possível explicar qualquer coisa através de uma definição fechada, ou de um "ponto congelado", é, pura e simplesmente, um erro, a que poderá dar o nome de reducionismo (é mesmo uma escola do pensamento). Este texto de Benjamin ajuda(-me?, -nos?) a colocar-nos num caminho de maior pluralidade, de uma atenção mais ampla para as várias contribuições que podem advir de vários pontos para convergir numa atenção, a partir da qual se poderá atingir ainda uma outra diversidade (uma visão ampla da banda desenhada). Aproveitando as expressões de uma outra pensadora, Nayla Farouki, "é sempre possível mostrar que um estádio particular da nossa consciência é afectado, ou mesmo gerado, por uma acção material [a técnica de Benjamin], (...) por um impacte psíquico [os efeitos], (...) por uma origem social [a mudança social]" [O Que é uma Ideia?, Instituto Piaget]. Farouki refere-se a um "estádio da consciência", em abstracto, mas esse estádio pode tomar uma forma e um nome concreto, tal como uma forma de arte precisamente. A banda desenhada não apresenta quaisquer obstáculos que nos impeçam de a ver e estudar enquanto um desses estádios, produzidos pela consciência e produtores até de consciência. Mas vejamos aspectos mais balizados e próximos das palavras de Benjamin.
Walter Benjamin fala então destas "três linhas de desenvolvimento": técnica, efeitos, mudanças sociais.
1. A primeira parecem-me estar antes da obra de arte, separadas ou separáveis, e podendo surgir em vários tipos de obras de arte, ou em várias artes, etc. No campo que nos interessa, essas técnicas são variadíssimas, desde a representação do movimento, com ou sem linhas de acção, os balões para encerrar a fala, a divisão das cenas em "vinhetas" (quadradinhos ou outros mecanismos), a representação de espaços contíguos para "fora" da vinheta, ou divididos entre várias, a repetição das mesmas personagens em acções diferentes ou dos mesmos cenários para cenas diferentes, a representação de um "momento pregnante" (cf. Lessing), i.e., um momento certo de uma acção a decorrer e que aponte para ela na totalidade apesar de apenas se a ver num momento parcial, as onomatopeias, entre muitas outras. No entanto, como se disse antes, cada uma dessas técnicas não é "suficiente" (nem "necessária") para estarmos perante um exemplo de banda desenhada. Por exemplo, esta é uma das faces de um sarcófago de um cidadão romano, chamado Junius Bassus, que data de 359 e se encontra no Vaticano. Nesta face vemos a história de Jesus (ainda representado como imberbe, ou então escanhoado) em 10 cenas ("vinhetas", se quiserem): no centro será fácil entender a última ceia (acima) e a entrada em Jerusalém no burro (abaixo). Que há uma coincidência de técnica com o que nós hoje entendemos como banda desenhada não pode haver qualquer dúvida. Mas terá o mesmo efeito (percepção, ligações da memória) que a banda desenhada tem? Será que as mudanças sociais (a recepção destas imagens) operadas por este sarcófago eram as mesmas que a banda desenhada opera hoje?
2. O século XVIII foi particularmente profícuo em matérica de caricatura política, sobretudo em Inglaterra (não podendo, porém, descurar qualquer outro país crítico a Napoleão, por exemplo). A caricatura tem uma história particular, mas nos termos em que se aproxima do nosso campo terá a ver com alguns dos efeitos análogos àqueles da banda desenhada, que tanto poderão ser os do humor, como os de crítica moral-política (um valor que a caricatura assume nos fins da Idade Média), de expressividade exagerada ou estilizada (cujos precursores são os irmãos Carracci). Por exemplo, esta estampa de James Gillray é, apesar de a um primeiro olhar elíptica, bastante clara sobre o tipo de construção participativa a que são convidados os leitores e fruidores de banda desenhada. A relação entre o texto (Título & descritivo: "Contrastes na moda: o pequenino sapato da Duquesa dando passagem à magnificiência do pé do Duque") e a imagem será a pedra de toque desta arte moderna também. Mas estaremos perante um exemplo propriamente de banda desenhada, de uma perspectiva técnica? E o seu papel social, tão crítico e directamente endereçado, será o mesmo que se estabeleceria com as experiências modernas da banda desenhada?
3. As Cantigas de Santa Maria, encomendadas (e algumas criadas) pelo rei de Castela e Leão Afonso X, são uma obra magnífica, um exemplo superno da arte do seu tempo, século XIII, e que tem três vertentes: a poética, a musical e a gráfica. Trata-se de uma imensa colecção de cantigas dedicadas à Virgem Maria, logo, de poemas acompanhados por uma notação musical. Mas para além das canções, tem também páginas rica e brilhantemente iluminadas (passe o pleonasmo), as mais das vezes com "pranchas" de seis cenas (ou "vinhetas") que seguem mais ou menos próxima, mais ou menos distantemente as acções ou descrições das cantigas. Estas "pranchas" têm muitas das estratégias formais (as técnicas) da banda desenhada contemporânea, desde a repetição de personagem e de cenário (como podemos ver aqui no exemplo da cantiga 107), na contiguidade de cenário entre cenas ou na transição de personagens de uma cena para outra (provocando assim alguns efeitos análogos também), etc. No entanto, a relação destas imagens com as canções, por mais complexa que seja, está subsumida a um programa geral de elevar Santa Maria a figura tutelar da religiosidade católica. Mais, apenas existe um exemplar (o códice do Escorial) com todas estas características (as cópias restantes são diferentes em vários aspectos), e esse exemplar era apenas acessível a um número reduzidíssimo de "leitores". Se concordarmos com Kunzle, na sua visão institucional da banda desenhada como uma mass art, teriam portanto As Cantigas o mesmo papel social que viriam assumiar as obras de banda desenhada tout court da modernidade? Exerceria a mesma mudança?
Não quero dizer com nada disto que me recuse a estudar pinturas rupestres, a coluna de Trajano, sarcófagos esculpidos, tapeçarias figurativas, códices medievais ou outro tipo de produção cultural para falar de banda desenhada. Simplesmente penso que deveremos tomar um ponto de partida - por mais arbitrário que seja, mas desde que pertinente, e isso não faz um paradoxo - a partir de alguma atitude equilibrada entre a diástole (abrangendo o máximo de produções culturais, de obras de arte, de "coisas" que coincidam com a banda desenhada pelo menos num ponto ou aspecto) e a sístole (contraindo-se a atenção para apenas um reduzido número de "textos" que cumpram uma definição fechada em contornos demasiado formalistas ou falsamente essencialistas). É preciso não apenas olhar para os aspectos formais de determinada obra ou objecto de atenção (se tem "quadradinhos" ou "balões"), e talvez nem sequer apenas o seu valor ontológico (como com Thierry Groensteen, que a estuda enquanto linguagem, "conjunto original de mecanismos produtores de sentido", e de quem se falará), mas reflectir sobre o seu valor enquanto fenómeno antropológico, histórico-social, e verificar que relações estéticas estabelece com as outras artes do seu tempo específico.
se aceitarmos o facto de que não obstante existirem variadíssimas definições, deveremos antes eleger uma explicação que tome em conta uma progressão e metamorfose histórica;
se tomarmos como base a ideia de que a banda desenhada (mais que a ilustração) envolve uma mescla, uma simbiose, uma conjointure, de texto e imagem, logo que poderemos "roubar" métodos e modelos de várias disciplinas;
se nos dermos conta de que, de facto, é necessário não só um trabalho de pesquisa aturado e informado, como alguma capacidade de reflexão:
aceitaremos o facto de podermos encontrar apoio noutras paragens menos habituais dos "amantes da bd".
Walter Benjamin é um pensador muito famoso, um crítico filosófico que dedicou grande tempo da sua vida às artes, sobretudo àquelas que eram "novas" no seu tempo (o cinema, sobretudo, o qual, apesar das diferenças em relação à banda desenhada, continua a prover-nos de excelentes estudos comparativos). Escreveu muito, e bem, e morreu cedo demais. Como em muitos outros casos, a repercussão das suas ideias são bem posteriores ao período em que estava vivo, apesar dos vivos diálogos que estabeleceu com outras pessoas do seu tempo, e que lhe sobreviveriam. É bem possível que o seu "livro" mais famoso seja A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, escrito em 1936, mas cuja versão que nos é hoje acessível seja a, melhorada, de 1939. A sua tradução portuguesa pode ser encontrada em Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, publicado pela Relógio d’Água (Lisboa 1992), apesar de se adivinhar uma nova, mais cuidada, tradução, pelo Prof. João Barrento (pela Assírio & Alvim).
Nesse livro, discute-se o facto da arte sua contemporânea viver num novo meio de produção e distribuição, apagando assim a necessidade de um "original", na medida em que a sua fruição, digamos, completa, total, apenas acontece na presença da própria cópia. Ou melhor, é a cópia a obra de arte que deve ser "consumida". Isto acontece com o cinema (vemos uma cópia de celulóide ou, agora, digital), com os livros e, naturalmente, com a banda desenhada [isto não invalida que não exista, em relação à banda desenhada, "arte original", ou que ela não seja "banda desenhada", mas lá iremos; e esta é uma das razões pela qual Kunzle indica a sua terceira condição na definição].
Essa alteração do "consumo", da "fruição", implica também que a atitude perante essas obras de arte se altere... W. Benjamin cunhou o conceito de "aura", para explicar uma espécie de distância que estabelecemos entre nós e a obra de arte "clássica". Uma espécie de respeito, de assombro. Com o advento das artes que vivem na própria condição de serem reprodutíveis (copiadas) através de técnicas, as cópias são antes passíveis de uma aproximação. Não é que desapareça a aura; mas ela inverte-se: o filósofo fala da transformação de uma atitude "cultual" para uma de "exposição". De uma distância, passamos a ter obras de arte que são fruidas com uma intimidade diferente. Ambos os tipos de arte existem contiguamente, um não desapareceu pela presença do outro, mas sem dúvida que a primeira espécie de arte - a pintura, por exemplo - se alterou profundamente com a presença das outras artes.
Nessa obra, na secção XIV, há uma nota (v. pg. 105), que copio aqui na íntegra. Indico-a porque, se bem que apelar simplesmente para a autoridade pareça uma forma de escapar a uma explicação mais pessoal e abrangedora, as palavras de Benjamin ajudam profundamente a "tomar a decisão" de escolher um único autor como "inventor" da banda desenhada, como veremos. A razão reside no facto desta nota apontar uma maneira de sabermos como dizer que algo é uma "nova forma de arte". E tal como num prisma temos um raio de luz que se divide em várias cores, também poderemos encará-lo ao contrário, e ver como as várias cores são as diferentes percepções de um fenómeno que é unido. É como se as cores pudessem ter existido sempre, de uma maneira ou de outra, mas subitamente vemo-las a convergir num mesmo ponto, passando a ser um só feixe (que é Töpffer).
“A obra de arte”, diz André Breton, “só tem valor na medida em que vibrem nela os reflexos do futuro”. De facto, qualquer forma de arte desenvolvida situa-se no ponto de intersecção de três linhas de desenvolvimento. A técnica, em primeiro lugar, trabalha no sentido de uma determinada forma de arte. Antes de surgir o filme, havia aqueles livrinhos de fotografias cujas imagens, através da pressão do polegar, passavam muito depressa, para o observador, um combate de boxe, ou um jogo de ténis [v. imagem do kineográfo]; havia as máquinas dos bazares que, dando a volta à manivela, mostravam sequências de imagens. – Em segundo lugar, as formas de arte tradicionais, em determinadas fases do seu desenvolvimento, esforçaram-se por obter efeitos que, posteriormente, foram facilmente obtidos por novas formas de arte. Antes do cinema se impor, os dadaístas procuraram, através dos seus espectáculos, levar ao público um movimento que Chaplin provocou com toda a naturalidade. – Em terceiro lugar, mudanças sociais, que frequentemente passam despercebidas, suscitam uma mudança na recepção, que beneficia novas formas de arte. Antes do cinema ter começado a criar o seu público, já o público se reunia no ‘Kaiserpanorama’ para a recepção de imagens (que tinham deixado de ser imóveis) [v. imagem]. O público ficava em frente de um biombo no qual estavam instalados estereoscópios atribuídos a cada um dos espectadores. Nestes estereoscópios surgiam imagens, uma a uma, que persistiam um instante para depois dar lugar às seguintes. Edison ainda teve que trabalhar com meios semelhantes (antes de se conhecer a tela de cinema e o método da projecção), ao apresentar as primeiras fitas de cinema a um público pouco numeroso que fixava o olhar num aparelho em que se desenrolava a sucessão das imagens. – Aliás, na instalação do ‘Kaiserpanorama’ é expressa muito claramente uma dialéctica do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema ter tornado colectivo o visionamento de imagens, antes do estereoscópio, surge o visionamento individual, rapidamente ultrapassado, com a mesma intensidade que outrora tinha suscitado a contemplação da imagem de Deus pelo padre, na sua cela.
Comentário:
Explicando ainda doutro modo: a esmagadora maioria das pessoas gosta e prefere soluções unitárias e simples, mas elas, na esfera do humano e das artes, raramente existem. A falácia de acreditar que é possível explicar qualquer coisa através de uma definição fechada, ou de um "ponto congelado", é, pura e simplesmente, um erro, a que poderá dar o nome de reducionismo (é mesmo uma escola do pensamento). Este texto de Benjamin ajuda(-me?, -nos?) a colocar-nos num caminho de maior pluralidade, de uma atenção mais ampla para as várias contribuições que podem advir de vários pontos para convergir numa atenção, a partir da qual se poderá atingir ainda uma outra diversidade (uma visão ampla da banda desenhada). Aproveitando as expressões de uma outra pensadora, Nayla Farouki, "é sempre possível mostrar que um estádio particular da nossa consciência é afectado, ou mesmo gerado, por uma acção material [a técnica de Benjamin], (...) por um impacte psíquico [os efeitos], (...) por uma origem social [a mudança social]" [O Que é uma Ideia?, Instituto Piaget]. Farouki refere-se a um "estádio da consciência", em abstracto, mas esse estádio pode tomar uma forma e um nome concreto, tal como uma forma de arte precisamente. A banda desenhada não apresenta quaisquer obstáculos que nos impeçam de a ver e estudar enquanto um desses estádios, produzidos pela consciência e produtores até de consciência. Mas vejamos aspectos mais balizados e próximos das palavras de Benjamin.
Walter Benjamin fala então destas "três linhas de desenvolvimento": técnica, efeitos, mudanças sociais.
1. A primeira parecem-me estar antes da obra de arte, separadas ou separáveis, e podendo surgir em vários tipos de obras de arte, ou em várias artes, etc. No campo que nos interessa, essas técnicas são variadíssimas, desde a representação do movimento, com ou sem linhas de acção, os balões para encerrar a fala, a divisão das cenas em "vinhetas" (quadradinhos ou outros mecanismos), a representação de espaços contíguos para "fora" da vinheta, ou divididos entre várias, a repetição das mesmas personagens em acções diferentes ou dos mesmos cenários para cenas diferentes, a representação de um "momento pregnante" (cf. Lessing), i.e., um momento certo de uma acção a decorrer e que aponte para ela na totalidade apesar de apenas se a ver num momento parcial, as onomatopeias, entre muitas outras. No entanto, como se disse antes, cada uma dessas técnicas não é "suficiente" (nem "necessária") para estarmos perante um exemplo de banda desenhada. Por exemplo, esta é uma das faces de um sarcófago de um cidadão romano, chamado Junius Bassus, que data de 359 e se encontra no Vaticano. Nesta face vemos a história de Jesus (ainda representado como imberbe, ou então escanhoado) em 10 cenas ("vinhetas", se quiserem): no centro será fácil entender a última ceia (acima) e a entrada em Jerusalém no burro (abaixo). Que há uma coincidência de técnica com o que nós hoje entendemos como banda desenhada não pode haver qualquer dúvida. Mas terá o mesmo efeito (percepção, ligações da memória) que a banda desenhada tem? Será que as mudanças sociais (a recepção destas imagens) operadas por este sarcófago eram as mesmas que a banda desenhada opera hoje?
2. O século XVIII foi particularmente profícuo em matérica de caricatura política, sobretudo em Inglaterra (não podendo, porém, descurar qualquer outro país crítico a Napoleão, por exemplo). A caricatura tem uma história particular, mas nos termos em que se aproxima do nosso campo terá a ver com alguns dos efeitos análogos àqueles da banda desenhada, que tanto poderão ser os do humor, como os de crítica moral-política (um valor que a caricatura assume nos fins da Idade Média), de expressividade exagerada ou estilizada (cujos precursores são os irmãos Carracci). Por exemplo, esta estampa de James Gillray é, apesar de a um primeiro olhar elíptica, bastante clara sobre o tipo de construção participativa a que são convidados os leitores e fruidores de banda desenhada. A relação entre o texto (Título & descritivo: "Contrastes na moda: o pequenino sapato da Duquesa dando passagem à magnificiência do pé do Duque") e a imagem será a pedra de toque desta arte moderna também. Mas estaremos perante um exemplo propriamente de banda desenhada, de uma perspectiva técnica? E o seu papel social, tão crítico e directamente endereçado, será o mesmo que se estabeleceria com as experiências modernas da banda desenhada?
3. As Cantigas de Santa Maria, encomendadas (e algumas criadas) pelo rei de Castela e Leão Afonso X, são uma obra magnífica, um exemplo superno da arte do seu tempo, século XIII, e que tem três vertentes: a poética, a musical e a gráfica. Trata-se de uma imensa colecção de cantigas dedicadas à Virgem Maria, logo, de poemas acompanhados por uma notação musical. Mas para além das canções, tem também páginas rica e brilhantemente iluminadas (passe o pleonasmo), as mais das vezes com "pranchas" de seis cenas (ou "vinhetas") que seguem mais ou menos próxima, mais ou menos distantemente as acções ou descrições das cantigas. Estas "pranchas" têm muitas das estratégias formais (as técnicas) da banda desenhada contemporânea, desde a repetição de personagem e de cenário (como podemos ver aqui no exemplo da cantiga 107), na contiguidade de cenário entre cenas ou na transição de personagens de uma cena para outra (provocando assim alguns efeitos análogos também), etc. No entanto, a relação destas imagens com as canções, por mais complexa que seja, está subsumida a um programa geral de elevar Santa Maria a figura tutelar da religiosidade católica. Mais, apenas existe um exemplar (o códice do Escorial) com todas estas características (as cópias restantes são diferentes em vários aspectos), e esse exemplar era apenas acessível a um número reduzidíssimo de "leitores". Se concordarmos com Kunzle, na sua visão institucional da banda desenhada como uma mass art, teriam portanto As Cantigas o mesmo papel social que viriam assumiar as obras de banda desenhada tout court da modernidade? Exerceria a mesma mudança?
Não quero dizer com nada disto que me recuse a estudar pinturas rupestres, a coluna de Trajano, sarcófagos esculpidos, tapeçarias figurativas, códices medievais ou outro tipo de produção cultural para falar de banda desenhada. Simplesmente penso que deveremos tomar um ponto de partida - por mais arbitrário que seja, mas desde que pertinente, e isso não faz um paradoxo - a partir de alguma atitude equilibrada entre a diástole (abrangendo o máximo de produções culturais, de obras de arte, de "coisas" que coincidam com a banda desenhada pelo menos num ponto ou aspecto) e a sístole (contraindo-se a atenção para apenas um reduzido número de "textos" que cumpram uma definição fechada em contornos demasiado formalistas ou falsamente essencialistas). É preciso não apenas olhar para os aspectos formais de determinada obra ou objecto de atenção (se tem "quadradinhos" ou "balões"), e talvez nem sequer apenas o seu valor ontológico (como com Thierry Groensteen, que a estuda enquanto linguagem, "conjunto original de mecanismos produtores de sentido", e de quem se falará), mas reflectir sobre o seu valor enquanto fenómeno antropológico, histórico-social, e verificar que relações estéticas estabelece com as outras artes do seu tempo específico.
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