Sunday, December 03, 2006

"9ª Arte"?

De certeza que já escutaram muitas vezes (mas não de mim) referirem-se à banda desenhada como a “9ª Arte”. De onde vem esta expressão?
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta a evolução etimológica da palavra arte. Em tempos idos, não se relacionava com o que hoje entendemos por tal, um modo de expressão pessoal, criativo, individual, etc. Derivava antes da palavra latina arte que, apesar de estar associada à palavra grega artios (“completo”), traduzia a noção grega de téchnē, que se refere a um saber prático, especializado, enfim, uma “técnica”.
Na Idade Média, com o advento das Universidades, os saberes aí ministrados eram organizados em disciplinas às quais se davam o nome de “artes”. Poder-se-iam aprender “artes” ora para ganhar a vida, com uma profissão, ora para se entregarem simplesmente ao prazer e ao esforço do conhecimento. As primeiras estavam “presas” a um objectivo último (ganhar dinheiro), as segundas eram “livres”, pois eram feitas apenas para crescerem no seu interior. Por isso se chamavam a estas artes as artes liberais (e às primeiras as artes iliberais, mecânicas ou vulgares).
Como tudo nesse tempo (fruto de uma profunda crença um Deus ou Móbil superior e o Universo organizado a partir de então), estas artes eram hierarquizadas e organizadas. Eram sete e subdividiam-se em trívio ou artes triviales (relacionadas com a linguagem) – retórica, gramática e dialéctica – e em quadrívio ou artes quadriviales – geometria, astronomia, aritmética e música. As razões dessa organização são multímodas e relacionam-se com as culturas da Antiguidade, com o modo de entendimento do Universo, e seria um método organizativo que influenciaria toda a cultura ocidental (os saberes disciplinados, cada vez mais repartidos para acentuar um saber especializado, são uma longínqua herança). O que se ganha em especialização (agora por razões iliberais, claro) perde-se em visão panorâmica.
Ora, ainda dentro do espírito dos tempos, em que se faziam associações e rimas de todas as coisas com tudo o resto, é natural que se aproximassem estas Sete Artes Liberais com muitas outras realidades agrupadas em sete: as Sete Virtudes, os Sete Sacramentos, as Sete Colunas da Sabedoria (Provérbios 9:1-3), etc. A sua representação icónica, como mulheres, e às quais se atribuíam insígnias ou objectos distintivos foi também multiplicada (podem ver aqui uma imagem) na época (e se souberem alemão, vejam aqui também, pelos menos as imagens).
Ora, esta mania de organizar as coisas de um modo hierarquizado manter-se-ia durante muito, muito tempo, sobretudo naqueles escritores que exerceriam um maior influência sobre o pensamento, como os filósofos, e acima de tudo aqueles que dedicaram algum tempo às artes. Por exemplo, vejamos os exemplos de Kant e de Hegel. Kant, no seu Crítica da Faculdade do Juízo (Imprensa Nacional – Casa da Moeda, v. parágrafo 51), apresenta uma divisão das artes, de acordo com os sentidos, ou melhor, os modos de expressão, que são três: a palavra (articulação), o gesto (gesticulação) e o tom (modulação). Não se esqueçam que as razões e argumentação que leva a estas ideias é muito complexa, e estou a apresentar aqui uma mera superficialidade das mesmas. Assim temos as artes da palavra ou elocutivas, como a Eloquência e a Poesia, as artes do gesto ou figurativas, como a Escultura, a Arquitectura, a Verdadeira pintura e a Jardinagem, e as artes do tom ou do jogo das sensações, como a Música e a Arte das Cores. Estas são, portanto, e de acordo com Kant, as Belas-Artes, existindo ainda outros produtos artísticos, mas menos belos, como o Espectáculo, o Canto, a Ópera, a Dança, a Tragédia rimada, o Poema didáctico, a Oratória, etc., pois de acordo com o seu idealismo, estas formas não estão conformes ao juízo da razão. Kant procede a uma divisão das artes, mas dentro do primeiro sistema não há propriamente uma hierarquia. Seja como for, sabe-se que Kant detestava música.
Hegel, por outro lado, na sua Estética (em português, na Guimarães), e na sua crítica ao idealismo de Kant, já elabora uma hierarquia, uma verdadeira classificação (por classes), na qual a arte, quanto menos “material”, mais “expressiva” se torna. Daí que a mais baixa das artes seja a Arquitectura, e a mais elevada de todas a Poesia (na qual se inscreviam as artes dramáticas e sendo a mais alta forma delas a Tragédia). Entre as duas, temos a Escultura, a Pintura, a Dança e a Música. Tal como Kant detestava música, Hegel gostava de música. Mais, a relação do sistema das artes deste filósofo relaciona-se com a sua noção de dialéctica e as famosas tríades, e de História, logo a sua primeira divisão é entre artes simbólicas (associadas à Índia, à Pérsia, ao Egipto), clássicas (Grécia antiga) e românticas (desde a Idade Média até ao seu tempo), que não distinguiam propriamente as artes em si, mas classificava vários estilos das artes. Quer dizer, existe a poesia enquanto arte, e três estádios sucessivos: a poesia simbólica, a poesia clássica, e a poesia romântica.
Por outro lado, é preciso também citar um outro teórico das artes, chamado Gottfried Ephraim Lessing, que escreveu um livro muito influente intitulado Laooconte (em português, se bem que apenas exista tradução no Brasil). Nessa obra, Lessing postula que deve existir uma fronteira clara (normativa, portanto) que separe as artes espaciais (a Arquitectura, a Escultura e a Pintura) das temporais (a Música e a Dança). É apenas (?) um outro sistema classificatório.
Já no início do século vinte, um teórico e escritor do cinema italiano, chamado Ricciotto Canudo, amigo de muitos autores famosos do seu tempo (Picasso, Apollinaire, Ravel, etc.), tentava discutir a integração desta nova arte num sistema mais alargado. Uma vez que o cinema começou como uma arte de “feira”, pouco “séria” e “elevada”, a sua defesa passava pelo cotejamento com as ditas Belas-Artes (mas repare-se que a Jardinagem de Kant não é hoje assim considerada, nem a Tragédia é vista como parte da Poesia, e que a Geometria e a Astronomia são hoje “ciências”). Em 1911, Canudo publicou em Paris um manifesto que se intitulava O Nascimento de uma Sexta Arte. Ensaio sobre o Cinematógrafo; nesse texto, o italiano parte do sistema de Lessing, afirmando que o cinema agregava as artes espaciais às temporais. Passados alguns anos, lá parece ter mudado de ideias, pois funda o Clube dos Amigos da Sétima Arte, e em 1923 publica o Manifesto da Sétima Arte. A mudança está na inclusão agora da poesia, passando a estar mais próximo do sistema de Hegel. O Cinema, seja como for, era a grande arte de “síntese”, logo, superior a todas as outras. Enfim, é a Canudo que se deve a expressão “sétima arte”, apesar das dúvidas iniciais.
Esta mania de sistematizar as artes, mesmo as “populares” (ou “de massas”) não era apenas mania dos europeus. Em 1924, o crítico Gilbert Seldes publica o livro The Seven Lively Arts, que podem ler na íntegra aqui, e que é dedicado à Banda Desenhada, aos Filmes, à Comédia Musical, ao Vaudeville, à Rádio, à Música Popular e à Dança, como já tinha indicado antes. No que diz respeito à banda desenhada, é aí que se encontra um excelente artigo histórico sobre a não menos histórica mas ainda fabulosa série Krazy Kat, de George Herriman (a abrir este parágrafo, uma das mais belas pranchas).
Aproximamo-nos do nosso interesse, mas meio-distraídos...


Em 1964, na revista Spirou, um dos seus autores mais famosos, Maurice de Bévère (mais conhecido por Morris, o do Lucky Luke), com Pierre Vankeer, iniciam uma série de artigos que criam um “Museu da Banda Desenhada”, que dava conta de exemplos desta arte ao longo da história e dos países. O seu título era “Nona Arte”. Mais tarde, em 1971, Francis Lacassin, um outro teorizador e ensaísta dedicado positivamente às artes populares (na esteira de Canudo, de Seldes, e de outros, como W. Benjamin, por exemplo), publica um livro intitulado Para uma nona arte, a banda desenhada, cristalizando assim a expressão. Mais recentemente, o CNBDI francês publicaria uma revista excelente, dirigida por Thierry Groensteen, precisamente intitulada 9eme. Art. Insiste-se... E esta série de disparates continua, com o oitavo lugar ocupado ora pelo teatro ora pela televisão, pela fotografia ou o vídeo... E os jogos interactivos (quer em papel e dados ou cartas quer electrónicos) já se batalham pelo “próximo patamar”...
No fim de contas, para que serve esta expressão? A meu ver, é absolutamente necessário um trabalho aturado, pensado e relevante sobre as especificidades e mesmo a ontologia da banda desenhada que leve em conta os diálogos possíveis dela com as outras artes, tome esse diálogo os contornos que tomar. Todavia, criar um número, uma hierarquia, não me parece ser o caminho correcto. Dizer “nona arte” não ajuda em absolutamente nada em entender a banda desenhada e esse diálogo e, mais, revela uma tremenda visão limitadora do modo como as Artes (entendidas do modo mais amplo) funcionam na contemporaneidade, quer ontológica quer sociologicamente: se alguma noção que preside ao modo como a cultura se influencia entre si e as ideias transitam, então a noção dos filósofos Deleuze e Guattari de "rizoma" é muito acertada. Algo que cresce em todas as direcções sem qualquer espécie de organização interna ou previsível, como o gengibre, ou a batata quando grela... A imagem aqui em cima não é de todo correcta, pois é arborescente; contudo, temos sempre o nosso próprio corpo, os olhos, a personalidade, no centro da tempestade que escolhemos como a nossa... Se me convencerem que essa expressão de "Nona Arte" ajuda a uma melhor compreensão das especificidades e dos valores estéticos (ou outros) da banda desenhada, o que é que ela encerra enquanto definidora ou explicativa desses papéis, é possível que aceitasse a necessidade de erigir um novo sistema das artes. Não me parece, repito, necessário fazê-lo, já que uma “narrativa histórica” (aproximamo-nos de Carroll, novamente) tomará em conta o progresso possível do pensamento e das atitudes filosóficas perante o mundo, e as artes nele, e qualquer tipo de encurralamento (à la Lucky Luke?), como esse das hierarquias, é como os três “fs” da prancha da Krazy Kat: ele frusta (“foil”), engana (“fool”), e falha-nos (“fail”)...

11 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Olá!
Sou Ana Helena de São Paulo, Brasil, pesquiso razões pelas quais o Teatro não é umas das artes liberais, terias alguma fonte?
Agradeço se a puderes informar!
Obrigada
Ana

4:39 PM  
Blogger Geraldes Lino said...

Viva Pedro Moura
É de facto um tema digno de discussão aprofundada, essa curiosidade de se chamar 9ª Arte à Banda Desenhada (coisa que também tenho escrúpulo em escrever), para além dos aspectos mais profundos que você tão bem traz à colação.
Mas ficando-nos apenas pela análise superficial, devo dizer-lhe que, numa das minhas conversas com Maurice de Bevère, aliás, Morris(fiz-lhe duas entrevistas para a revista Selecções BD, uma para a 1ª série, outra para a 2ª, esta por imposição da direcção da revista), tendo conhecimento, por ter visto numa colectânea da revista Spirou, que ele terá sido a primeira pessoa a escrever (a criar?) essa expressão 9ª Arte na homónima rubrica daquela publicação, perguntei-lhe por que razão tinha ele escrito 9ª Arte e não 8ª, visto que essa discutível numeração das artes só tinha chegado, artificialmente embora, à 7ª, dedicada ao Cinema.
E ele respondeu-me que, na realidade, tinha começado por dar o título de 8ª Arte à sua rubrica, mas que, por imposição do director da Spirou, ele tinha modificado para 9ª.
Há também a considerar o livro "Pour un neuvième art", que reincide na numeração artificial.
E há outro aspecto a considerar, também originária de França, mas que não cabe aqui num comentário avulso.

9:11 AM  
Blogger Geraldes Lino said...

Ah, e lembrei-me agora duma coisa (mera curiosidade) que queria escrever e que me tinha escapado: há bastantes anos, em artigos publicados em revistas brasileiras de "histórias em quadrinhos" (influência da nossa expressão "histórias aos quadradinhos" ou "histórias em quadradinhos" ?), vi várias vezes escrita a expressão 8ª Arte.

9:16 AM  
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