
Como vimos, é no interior das vinhetas que se inscrevem os vários signos que ocorrem na banda desenhada. Como também foi indicado anteriormente, poderemos, portanto, dizer, que são as vinhetas (ou “quadradinhos”) as “unidades mínimas de significado”. O autor que me pauta neste passo é sobretudo Thierry Groensteen, destacando-se a sua obra seminal,
Le Système de la Bande Dessinée (de 1999): a “imagem BD (a vinheta) é fragmentária e integrada num sistema de proliferação” (pg. 6). É ela que nos permitirá aproximar de uma possível “linguagem da banda desenhada”, ainda que aqui se deve entender linguagem como um “conjunto original de mecanismos produtores de sentido” (mas não como um código; v. abaixo). E uma vez que a preocupação primeira que seguiremos aqui não é propriamente sociológica, mas sim ontológica, é a partir da estruturação e relação entre as vinhetas que deveremos construir o nosso entendimento da banda desenhada.
Não obstante essa eleição, é preciso não deixar de ter em contra que as vinhetas já são, em si mesmas, complexas, uma vez que integram elementos icónicos, simbólicos, plásticos. Houve autores que tentaram ver nesses elementos unidades menores e analisáveis enquanto parte de uma linguagem. Porém, o tipo de relações (
articulações) que esses elementos estabelecem entre si são infinitos e não poderão jamais ser inteligíveis enquanto um sistema fechado e passível de ser mapeado ou simplificado numa qualquer gramática. Existirão tradições, usos correntes, práticas comuns, sem dúvida – por exemplo, um ponto negro para “olhos”-, mas isso não implica um
sistema, e não tem qualquer diferença de qualquer outra prática cultural humana. Ainda assim, poderemos entender que, havendo um significado icónico (“pessoa”, “cão”, etc.), esses mesmos elementos poderão ser considerados “sub-entidades”, para utilizar um termo do Grupo μ, autor colectivo do
Traité du signe visuel, a maior tentativa de estabelecer um sistema semiótico do visual. Aliás, são eles que explicam de um modo cabal e directo a diferença entre um
sistema e um
código, o que ajuda a entender o título do livro de Groensteen: “um sistema é um conjunto de valores estruturados sobre um só plano (exemplo canónico: /verde/-/vermelho/ no caso do código da estrada). Um código é a relação termo a termo de oposições que estruturam sistemas de planos diferentes (o código da estrada coloca frente a frente a oposição /verde/-/vermelho/, que valem para um plano, e a oposição “permitido”-“interdito”, que valem para outro).” Acrescentemos que o plano do /verde/-/vermelho/ seria o
da expressão para o do
plano de conteúdo do “permitido”-“interdito”.[pg. 442 do livro citado]. O que importa, portanto, não é estudar – porque é impossível fazer uma descrição ora completa ora universal – as relações internas à vinheta, mas antes as articulações entre estas. Não que não seja possível (apesar de um esforço titânico), mas não é pertinente. [os exemplos aqui mostrados são retirados da primeira história do
Batman, de Gil Kane, de
Pillules Blues, de
Frederik Peeters, de
1001 Nights, de Hang, Seung-hee e Jeon, Jin-seok, e
Mr. O, de Lewis Trondheim].




Ora, o que nos interessará, para já, são as entidades de pleno direito: as vinhetas. [Nota: nem sempre essas unidades coincidem ou existem contornadas por um filamento, há outros tipos de “divisão” da vinheta; por outro lado, no seu interior podem exponenciar a unidade de acção, de tempo, de espaço, etc., para além da “unidade”] Elas fecham e criam uma unidade: de tempo, de acção, de espaço, de aspecto, etc. Um enunciado de banda desenhada só pode existir na multiplicidade dessas vinhetas, e é aqui que emerge de imediato o princípio que Groensteen indica como aquele que rege a banda desenhada: o princípio da
solidariedade icónica.
Isto significa que, em primeiro lugar, estamos perante
sequências. Uma sequência não é uma série, se entendermos esta última por um simples conjunto de elementos que partilham alguma característica comum mas sem qualquer princípio organizativo; uma sequência já apresenta (de uma forma mais ou menos clara, mais ou menos linear) um qualquer tipo de organização. Por outro lado, essas imagens são, ao mesmo tempo,
separadas - daí a existência das vinhetas como unidades, e significativas - e
coexistentes - por partilharem um mesmo espaço. (Veremos que esse princípio é estudado por Groensteen de dois modos: segundo o que ele chama de
artrologia, isto é, os modos de articulações possíveis, e a
espacio-topia, que terá a ver com distribuições. Mas uma coisa mistura-se com a outra, tornando todo este sistema num todo coeso)

Que espaços serão esses? Vejamos sucessivamente a que nos referimos como “espaço”. Antes de mais temos a vinheta, como vimos. Para, digamos, “cima e para a frente”, teremos a tira – um espaço “intermédio” -, depois a
prancha, no fim o “texto” completo (que pode ocupar uma “estória”, uma “revista”, um “livro”, uma “série”, etc.). Podemos ver ainda, “para trás e para dentro”, o espaço representado no interior dessa vinheta (o espaço da história, da acção), e, ainda, o espaço reservado ao balão. Este último é uma espécie de buraco negro, porque ele não existe no espaço da acção, mas apenas é um índice quer de atribuição do discurso falado quer da inscrição do próprio discurso. Isto é, se olharmos para este exemplo de George Herrimann, do
Krazy Kat [cliquem sempre sobre as pranchas para ver maior], veremos como existem placas onde está inscrito texto e vários balões... Se estivéssemos no interior daquele universo diegético, se fôssemos uma das personagens, poderíamos ver essas placas mas não os balões... estes existem apenas no espaço-tempo da acção, não da história (todos os elementos que são necessários para retratar a acção).

Pela natureza da banda desenhada, a acção é fragmentada, e é para isso que a vinheta serve em primeiro lugar, a estruturação da acção. A articulação dos materiais icónicos, linguísticos ou outros no seu interior, que sublinha a função separadora e a da leitura da vinheta (v. abaixo), é a acção da divisão da acção pretendida em momentos-chave, atribuindo-se cada um desses momentos a uma vinheta. Criam-se assim os enquadramentos. Em francês é o que se chama de “découpage”, em inglês “breakdowns”, e é o que rege, por exemplo, os
storyboards, ou
thumbnails, etc. [veja-se o exemplo de
Batman]
Porém, estas vinhetas são depois distribuídas na prancha, ou página. Ou seja, faz-se a articulação dos enquadramentos, a partilha de um mesmo espaço (maior). Essa é a acção do arranjo da prancha, ou “mise-en-page”. [reparem-se novamente no exemplo de F. Peeters, desta feita com a prancha completa]

As vinhetas são, portanto, um “espaço” (em si mesmas e no seu interior) e um “lugar” (num espaço maior, a tira, a prancha, etc.): daí que Groensteen fale de uma estruturação
espácio-tópica. Isto significa que podemos, por isso,
descrever as vinhetas em si (através de um movimento de fragmentação, distribuição, dispersão), ou
observar as suas coordenadas em situação (através da sua conjunção, encadeamento, repetição).
A
artrologia pode ser vista a dois níveis: a um nível
restrito, que se associa às relações mais elementares, lineares, entre cada vinheta (a
découpage). A esse nível, é possível estabelecer uma espécie de “gramática” de relações entre cada
passagem, ou transição, das vinhetas [veja-se o exercício que Groensteen faz sobre esta prancha do
Corentin de Paul de Cuvelier e Jean Van Hamme; as relações podem, todavia, ultrapassar a da vinheta única, como se pode ver no exemplo de
Pablo Auladell]

Há também um nível
geral, das relações translineares, distantes, entrando aqui a noção de
tressage (“entrelaçamento) de Groensteen, que dá conta das relações que as vinhetas podem estabelecer entre si, mesmo
in absentia (“na ausência”), isto é, não no espaço de uma mesma prancha ou as duas pranchas de um livro que o olho possa abarcar de um “golpe de vista”, mas que estabelecerão de uma página para outra, fazendo-nos recordar um
leit motiv, uma acção, etc. A memória do leitor tem aqui um papel preponderante, o que é um argumento imediato contra a ideia de “passividade mental” na leitura da bd. Os exemplos maiores dados desta complexidade são-nos dados com o famoso episódio “Fearful Symmetry”, de
Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons e o álbum
Nogegon dos irmãos Schuiten: em ambos os casos, existem uma capicua visual, que faz desses dois textos uma um trabalho de preciosidade e minuciosidade estrutural [aqui, as pranchas centrais do episódio de
Watchmen].
Entre estas duas grandes áreas do sistema de banda desenhada (de Groensteen), a artrologia e a espácio-topia, há um modo de interacção
dialógica e
recursiva.
Dialógica pois há “uma associação complexa de instâncias necessárias em conjunto para a existência de um fenómeno” (ou por outras palavras, sem uma dessas áreas, ou “pólos”, não teríamos a banda desenhada).
Recursiva, pois são “fenómenos de interretroacção recíprocos entre as instâncias que se interregulam entre si, de modo a que os efeitos e os produtos são ao mesmo tempo causadores e produtores (produzidos)” (isto é, estão tão intricadamente interligados um ao outro que é impossível distinguir o que vem primeiro ou o que é mais importante; são ambos indispensáveis).
A especificidade da banda desenhada vive desta contínua oscilação entre imagens fragmentadas e únicas e a sua estruturação em sequência (e não me cinjo a serem organizadas em pranchas com várias vinhetas, poderá ser apenas uma imagem por página, etc.). Yves Lacroix (citado por Groensteen) resume bem essa especificidade: “a sua imobilidade fundamental, a simultaneidade e o panoptismo obrigatórios das suas unidades, ou dito doutro modo o seu estado serial”. Isto é: 1. as imagens são imóveis; 2. o nosso olho abarca todas as imagens lado a lado em primeiro lugar ao mesmo tempo; 3. depois passa a considerá-las separadamente, como que analisando-as.
Uma nota final: não se falou da narrativa. A narração não me parece ser uma condição absolutamente necessária, se entendermos por essa palavra uma estruturação formal de um número necessário de elementos narratológicos e a obrigatoriedade da existência de todos os elementos correlatos (personagem, espaço, tempo, continuidade diegética, etc.), tudo no seu sentido mais estrito e “clássico”. Porém, se entendermos a narratividade (a qualidade do narrativo) como uma capacidade de organização e de relacionamento de significados gerais da parte do leitor/espectador, ao longo de um intervalo de tempo, e que leve à inclusão de, por exemplo, um livro como o das perspectivas do Monte Fuji, de Hokusai, ou
Este céu cheio de terra de Max Tilmann, então aceitarei essa ideia como sempre verificada.