Tuesday, January 16, 2007

As transições entre vinhetas, segundo McCloud.

Um dos outros livros que abordam a banda desenhada de um modo geral mais badalados é o do autor americano Scott McCloud, Understanding Comics. The Invisible Art (1994). Haveria muito que falar deste livro, que tem aspectos muito positivos e muito avançados em relação à esmagadora maioria dos livros que abordavam a banda desenhada enquanto linguagem. Talvez os dois livros anteriores ao de McCloud dessa família seriam os de Will Eisner (Comics & Sequential Art e Graphic Storytelling), mas esses eram mais versões mais interessantes e inteligentes de um manual de técnicas de banda desenhada, do que uma análise cuidada das suas especificidades de um ponto de vista teórico. Todavia, quanto a mim, o livro de McCloud apresenta, precisamente dessa perspectiva mais teórica e balizada, alguns problemas. Vejamos dois.
É estranho, por exemplo, que o autor cite David Kunzle, mas no primeiro capítulo faça precisamente os erros de perspectivação ahistórica que o historiador apontara: não vendo as especificidades dos modos narrativos (ou outros) dos exempla que vai mostrando, alheio a um trabalho de antopologia estética, vai empilhando exemplos para provar a antiguidade desta “potência” da banda desenhada...
Outro: as mais das vezes, McCloud não apresenta exemplos retirados de outras obras para justificar as suas ideias sobre a banda desenhada, mas antes cria exemplos ad hoc para provar essa sua perspectiva.
Seja como for, concentrar-nos-emos brevemente num dos pontos-chave de McCloud. No capítulo três, logo após a ideia de que existe uma “terceira imagem” entre as duas vinhetas – ideia com a qual não concordo em absoluto, mas deixarei para outra ocasião a discussão -, isto é, precisamente a grande tese de McCloud, que a “arte invisível” da banda desenhada decorre nesse espaço intervinhetal, o autor passa a explicitar os modos de passagem. Mostro aqui o esquema que ele próprio apresenta (pg. 74).
Se no exercício de Groensteen, este autor francês insistia no papel “gramático” das transições intervinhetais, procurando sublinhar dessa forma a continuidade da linguagem possível (mas nunca se fechando a possibilidades várias, até mesmo inéditas), McCloud procura tipologizar essas mesmas transições a partir de uma perspectiva diferente, mais rígida, mas tentativamente mais universal. O problema dos exemplos ad hoc coloca-se desde já, mas é sobretudo na última “categoria” que o problema se acirra. Em defesa de McCloud, porém, diga-se que ele próprio afirma o seguinte: “este tipo de categorização é, na melhor das hipóteses, uma ciência inexacta, mas se utilizarmos a nosa escala de transições como uma ferramenta... começaremos a deslindar alguns dos mistérios que rodeiam a arte invisível da narratividade da banda desenhada (comics storytelling)!” Estilo bombástico, sem dúvida, mas deixando-nos a possibilidade de contestar.
Os tipos são os seguintes: 1º, de momento a momento; 2º, de acção a acção; 3º, de objecto a objecto; 4º, de cena a cena; 5º, de aspecto a aspecto; 6º, non-sequitur (isto é, “não segue”, não tem sentido).
Em relação ao tempo: os três primeiros tipos de transição são necessariamente associados a uma transitoriedade linear e progressiva do tempo (apesar de talvez ser possível pensar num “rewind” no caso dos dois segundos). Os seguintes, não, podendo dar conta de acontecimentos simultâneos, ou a vinheta “seguinte” apresentar momentos anteriores à primeira apresentada.
Em relação ao espaço: os dois primeiros têm de estar associados à mesma personagem ou agente da acção; a transição de objecto a objecto (“subject” deve ser entendido como “objecto de atenção”, não como “sujeito de acção) tem de estar no interior de uma mesma cena, mas podendo dar a possibilidade de abarcar várias perspectivas de um mesmo acontecimento, ou várias acções num mesmo ponto do tempo; as seguintes podem estabelecer os seus territórios o quão desligados uns dos outros quanto puderem e quiserem.
Em relação à “construção” do leitor: de acordo com McCloud, o leitor “preenche” esse espaço intervinhetal – como disse, não concordo com a ideia de “preenchimento”, demasiado gestaltista, mas antes numa participação da memória do leitor e numa virtualização (pensamos isto e aquilo) total existente, de facto, entre as duas vinhetas, actuais (o que lá está). Segundo essa perspectiva, a construção dos dois primeiros tipos não é muito problemática, é quase dada; no caso da transição de objecto a objecto, a relação é necessariamente estabelecida pelo envolvimento do leitor; no caso da transição de cena a cena, é necessário um trabalho maior de “razão dedutiva”, para que se possa entender qual a relação (de tempo, de espaço, de acção, etc.); no quinto tipo, associa-se antes a uma ideia do “olho vagueante sobre diferentes aspectos de um lugar, ideia ou ambiência”, não sendo necessária ou importante a relação de “progresso” espacial ou temporal; finalmente, teríamos a non-sequitur, na qual “não há, de modo algum, qualquer relação lógica entre as vinhetas!”
A única transição que me parece mais duvidosa, se não mesmo inexistente (e o próprio McCloud o corrobora), é a da non-sequitur. No seu livro, e na continuidade dos seus exemplos ad hoc, ocupa uma página com meia-dúzia de disparates para provar a ideia de que há “uma alquimia que funciona no espaço entre as vinhetas que nos pode ajudar a encontrar significados ou ressonâncias até na mais discordante das combinações”. Disse disparates porque é precisamente isso: por um lado, o que ele quer mostrar são as disparidades possíveis quando emerge a combinação aleatória, mas também, por outro, porque, fora de um contexto maior, de um propósito unificado narrativo (ou para-narrativo), não podemos de maneira alguma apagar esse non-sequitur. No exemplo mostrado nesta barra final, vemos um Nixon vitorioso, com fitas atrás, e depois o que parece ser um pastiche de arte abstracta, um “Léger Apicassado”... Mas porque é que isso não teria lógica numa história, imaginemos, passado em 1974, em que a notícia do caso Watergate despoleta uma crise existencial e criativa junto a um pintor? Já teríamos a nossa relação lógica narrativo-sequencial, e então passaríamos a estar perante uma transição de cena a cena ou de aspecto a aspecto (Nixon visitava a galeria), ou até de objecto a objecto (mesma situação, uma personagem dividindo o olhar entre um e outro).
Mais uma vez, como no caso das pranchas de Peeters, esta tipologia de transições intervinhetais é um bom ponto de partida para um estudo mais analítico da banda desenhada.

Uma tipologia das pranchas, segundo Peeters.

Um outro livro importante, publicado no espaço francófono, sobre a banda desenhada (e anterior ao de Groensteen) foi o Case, Planche, Récit (trad. “Vinheta, prancha, narrativa”, de 1998; aqui o livro apresenta-se na sua versão “de boslo”, de 2002) de Benoît Peeters (famoso autor, com o artista François Schuiten, da série As Cidades Obscuras). Este livro apresenta várias lições, importantes, mas concentrar-nos-emos no capítulo 2, “As aventuras da página”, uma vez que ele é discutido em algum pormenor por Groensteen.
Nesse capítulo, muito simplesmente, Peeters apresenta quatro tipos de pranchas, que na verdade poderemos ver mais como quatro “usos” que se podem dar à prancha, ou quatro “princípios” de construção das pranchas. Essas concepções são regidas no cruzamento de dois eixos: a relação entre a narrativa (récit) e a imagem (tableau), e a dominância de um aspecto sobre o outro, ora a narrativa ora a imagem... retomando assim uma discussão anterior de que a banda desenhada permite precisamente uma leitura narrativa, linear, literária (a sua faceta de legibilidade) e uma leitura tabular, enquanto visualidade, quadro, conjunto organizado de imagem, etc. (a sua faceta de visibilidade).
Assim chegaremos a quatro concepções.
1ª - a prancha convencional.
É óbvio que o autor tece algumas considerações gerais, de ordem sociológica e histórica, sobre as limitações apresentadas aos autores noutros momentos (por exemplo, os anos 60 e as revistas periódicas de banda desenhada franco-belgas), explicitando parcialmente o espaço próprio e até a consciência dos autores em relação a essas mesmas limitações. Não obstante, o que Peeters faz é apresentar de facto esta tipologia, esperando assim construir um ponto de partida que seja pertinente, do ponto de vista formal, para investigações posteriores. Em relação a este uso, Peeters aponta aquelas pranchas que se apresentam com um número regular de vinhetas, usualmente ou do mesmo tamanho ou múltiplas de uma unidade maior [como se vê neste exemplo do Buck Danny de Hubinon, em que em cada prancha temos uma vinheta que ocupa espaço de duas das menores e outra de quatro]. Como Peeters explica, este "convencional" nada tem de juízo de valor, apresentando-se antes como uma descrição literal do trabalho, uma vez que essa regularidade, à força de repetida, se torna "invisível" na leitura. Estamos, obviamente num campo onde é a narrativa que domina sobre a imagem, mas a sua relação é autónoma, levando a um efeito quase neutro dessa simbiose possível.
2ª – a prancha decorativa.
Neste tipo de prancha, é literalmente que salta à vista a predominância da imagem, uma vez que toda a prancha pode ser lida como um quadro unitário, de certa forma sublinhando não só a autonomia entre a imagem e a narrativa, como a emancipação da primeira em relação à segunda. [depreende-se de imediato desta prancha de Philipe Druillet] Peeters diz que neste tipo, há “um fascínio pela pintura” (que mima, de certa forma). Na maior parte dos casos, não é difícil imaginar que o autor lance um esboço de um desenho que reja toda a página, ou que a ocupe (um rosto, digamos), passando depois à distribuição das vinhetas ou dos vários momentos da acção que pretende representar.
3ª – a prancha retórica.
Nos dois casos seguintes, já não existirá uma autonomia tão grande entre a narrativa e a imagem, mas uma procura pela interdependência, ainda que se mantenham níveis díspares de domínio de uma sobre a outra. Neste caso particular, é novamente a narrativa que estará a comandar a construção da prancha: e as vinhetas, enquanto “unidades”, adaptar-se-ão às necessidades da diegese, retratando quase a própria acção que encerram. [o exemplo indicado por Peeters é esta prancha de Hergé, da série do Tintim, As Jóias de Castafiore, apontando sobretudo para as ª, 10ª e 11ª vinhetas, nas quais elas se vão progressivamente abrindo para dar conta da escorregadela da personagem Nestor] A este uso, notar-se-á em resultados expressivos, nos quais os dispositivos formais da banda desenhada, por mais inventivos que sejam, inovadores, etc., estão ao serviço da história que se deseja contar, e tudo existirá para esse fim. Essa é uma das razões pelas quais os álbuns do Tintim, quer se goste ou não, quer se julgue algo desajustados a um mundo demasiado entregue à contemporaneidade ou não, são de uma legibilidade incrivelmente fácil...
4ª – a prancha produtora.
Finalmente, invertendo-se aqui o domínio para o da imagem, temos o caso em que é a imagem, o princípio que o autor tenha decidido como instigador da prancha enquanto unidade “tabular”, visual, que exercerá influência sobre a história a contar, são essas opções do visual que farão pautar, em primeiro lugar e acima de tudo, o que se contará nela. [Peeters dá vários exemplos, entre os quais esta prancha do Little Nemo in Slumberland, de Winsor McKay, de 2 de Fevereiro de 1908: se olharmos apenas para a forma das vinhetas, notaremos que se trata de uma “escada”, em que a cada “fatia horizontal”, vistas da esquerda para a direita, a de cima vais crescendo onde a de baixo diminuí; no entanto a leitura é feita de um modo mais linear, da esquerda para a direita as quatro de cima, e depois as de baixo; os corpos das personagens, além de se adaptar ao tamanho das vinhetas através das anamorfoses a que são sujeitos ao atravessar o Hall of Mirrors; se começa este episódio numa leveza do sonho, já Nemo acorda no fim sob o peso do pesadelo] Peeters aponta para o facto de que este uso, apesar de tudo, é menos cultivado do que os outros três, sobretudo em obras de maior fôlego (isto é, pensadas de imediato enquanto livro); mas sublinha o seu aspecto criador. Apesar desta tipologia não se revelar enquanto uma hierarquia, é muito fácil depreender que, segundo Peeters, é o uso produtor que é o mais interessante, já que se trata da solução de busca por soluções gráficas que ajudem à construção da narrativa, procurando ser assim a forma mais acabada de ser banda desenhada.
Para além de...
De modo nenhum Peeters deseja que este pequeno sistema seja absolutamente rígido, mas apresentando-o enquanto tal, leva-nos a perguntar se funcionará sempre, se não será possível encontrar exemplos em que concorram mais que uma tipologia (o que parece impossível, de acordo com o cruzamento dos eixos)... É o que Groensteen faz, colocando em questão essa tipologia (v. o seu livro, pgs. 110 e ss.). Apenas como uma forma muito reduzida de ilustrar essas dúvidas e críticas, veja-se esta história completa em duas pranchas do artista espanhol Frederico del Barrio: consideraremos estas pranchas como convencionais, já que apresentam uma regularidade do tamnho e formato das vinhetas em cada prancha? ou decorativo, já que o total das pranchas estabelece uma indubitável relação visual, quer em termos de forma, de cor, e até a colocação da personagem que vai envelhecendo e movendo-se na "margem da praia", desenhando um V da sua própria "vida" que decorre?, ou ainda, um uso retórico, já que se atentarmos às duas "metades" dessa vida retratada, a posição/formato das vinhetas se adapta a uma certa ideia de velocidade e obstáculo sentido nessa marcha?
Tal como muitos outros, a tipologia de Peeters é um excelente ponto de partida para, de facto, depois de nele estar, nos afastarmos dele...

Monday, January 15, 2007

O Sistema da Banda Desenhada.

Como vimos, é no interior das vinhetas que se inscrevem os vários signos que ocorrem na banda desenhada. Como também foi indicado anteriormente, poderemos, portanto, dizer, que são as vinhetas (ou “quadradinhos”) as “unidades mínimas de significado”. O autor que me pauta neste passo é sobretudo Thierry Groensteen, destacando-se a sua obra seminal, Le Système de la Bande Dessinée (de 1999): a “imagem BD (a vinheta) é fragmentária e integrada num sistema de proliferação” (pg. 6). É ela que nos permitirá aproximar de uma possível “linguagem da banda desenhada”, ainda que aqui se deve entender linguagem como um “conjunto original de mecanismos produtores de sentido” (mas não como um código; v. abaixo). E uma vez que a preocupação primeira que seguiremos aqui não é propriamente sociológica, mas sim ontológica, é a partir da estruturação e relação entre as vinhetas que deveremos construir o nosso entendimento da banda desenhada.
Não obstante essa eleição, é preciso não deixar de ter em contra que as vinhetas já são, em si mesmas, complexas, uma vez que integram elementos icónicos, simbólicos, plásticos. Houve autores que tentaram ver nesses elementos unidades menores e analisáveis enquanto parte de uma linguagem. Porém, o tipo de relações (articulações) que esses elementos estabelecem entre si são infinitos e não poderão jamais ser inteligíveis enquanto um sistema fechado e passível de ser mapeado ou simplificado numa qualquer gramática. Existirão tradições, usos correntes, práticas comuns, sem dúvida – por exemplo, um ponto negro para “olhos”-, mas isso não implica um sistema, e não tem qualquer diferença de qualquer outra prática cultural humana. Ainda assim, poderemos entender que, havendo um significado icónico (“pessoa”, “cão”, etc.), esses mesmos elementos poderão ser considerados “sub-entidades”, para utilizar um termo do Grupo μ, autor colectivo do Traité du signe visuel, a maior tentativa de estabelecer um sistema semiótico do visual. Aliás, são eles que explicam de um modo cabal e directo a diferença entre um sistema e um código, o que ajuda a entender o título do livro de Groensteen: “um sistema é um conjunto de valores estruturados sobre um só plano (exemplo canónico: /verde/-/vermelho/ no caso do código da estrada). Um código é a relação termo a termo de oposições que estruturam sistemas de planos diferentes (o código da estrada coloca frente a frente a oposição /verde/-/vermelho/, que valem para um plano, e a oposição “permitido”-“interdito”, que valem para outro).” Acrescentemos que o plano do /verde/-/vermelho/ seria o da expressão para o do plano de conteúdo do “permitido”-“interdito”.[pg. 442 do livro citado]. O que importa, portanto, não é estudar – porque é impossível fazer uma descrição ora completa ora universal – as relações internas à vinheta, mas antes as articulações entre estas. Não que não seja possível (apesar de um esforço titânico), mas não é pertinente. [os exemplos aqui mostrados são retirados da primeira história do Batman, de Gil Kane, de Pillules Blues, de Frederik Peeters, de 1001 Nights, de Hang, Seung-hee e Jeon, Jin-seok, e Mr. O, de Lewis Trondheim].

















Ora, o que nos interessará, para já, são as entidades de pleno direito: as vinhetas. [Nota: nem sempre essas unidades coincidem ou existem contornadas por um filamento, há outros tipos de “divisão” da vinheta; por outro lado, no seu interior podem exponenciar a unidade de acção, de tempo, de espaço, etc., para além da “unidade”] Elas fecham e criam uma unidade: de tempo, de acção, de espaço, de aspecto, etc. Um enunciado de banda desenhada só pode existir na multiplicidade dessas vinhetas, e é aqui que emerge de imediato o princípio que Groensteen indica como aquele que rege a banda desenhada: o princípio da solidariedade icónica.
Isto significa que, em primeiro lugar, estamos perante sequências. Uma sequência não é uma série, se entendermos esta última por um simples conjunto de elementos que partilham alguma característica comum mas sem qualquer princípio organizativo; uma sequência já apresenta (de uma forma mais ou menos clara, mais ou menos linear) um qualquer tipo de organização. Por outro lado, essas imagens são, ao mesmo tempo, separadas - daí a existência das vinhetas como unidades, e significativas - e coexistentes - por partilharem um mesmo espaço. (Veremos que esse princípio é estudado por Groensteen de dois modos: segundo o que ele chama de artrologia, isto é, os modos de articulações possíveis, e a espacio-topia, que terá a ver com distribuições. Mas uma coisa mistura-se com a outra, tornando todo este sistema num todo coeso)
Que espaços serão esses? Vejamos sucessivamente a que nos referimos como “espaço”. Antes de mais temos a vinheta, como vimos. Para, digamos, “cima e para a frente”, teremos a tira – um espaço “intermédio” -, depois a prancha, no fim o “texto” completo (que pode ocupar uma “estória”, uma “revista”, um “livro”, uma “série”, etc.). Podemos ver ainda, “para trás e para dentro”, o espaço representado no interior dessa vinheta (o espaço da história, da acção), e, ainda, o espaço reservado ao balão. Este último é uma espécie de buraco negro, porque ele não existe no espaço da acção, mas apenas é um índice quer de atribuição do discurso falado quer da inscrição do próprio discurso. Isto é, se olharmos para este exemplo de George Herrimann, do Krazy Kat [cliquem sempre sobre as pranchas para ver maior], veremos como existem placas onde está inscrito texto e vários balões... Se estivéssemos no interior daquele universo diegético, se fôssemos uma das personagens, poderíamos ver essas placas mas não os balões... estes existem apenas no espaço-tempo da acção, não da história (todos os elementos que são necessários para retratar a acção).
Pela natureza da banda desenhada, a acção é fragmentada, e é para isso que a vinheta serve em primeiro lugar, a estruturação da acção. A articulação dos materiais icónicos, linguísticos ou outros no seu interior, que sublinha a função separadora e a da leitura da vinheta (v. abaixo), é a acção da divisão da acção pretendida em momentos-chave, atribuindo-se cada um desses momentos a uma vinheta. Criam-se assim os enquadramentos. Em francês é o que se chama de “découpage”, em inglês “breakdowns”, e é o que rege, por exemplo, os storyboards, ou thumbnails, etc. [veja-se o exemplo de Batman]
Porém, estas vinhetas são depois distribuídas na prancha, ou página. Ou seja, faz-se a articulação dos enquadramentos, a partilha de um mesmo espaço (maior). Essa é a acção do arranjo da prancha, ou “mise-en-page”. [reparem-se novamente no exemplo de F. Peeters, desta feita com a prancha completa]
As vinhetas são, portanto, um “espaço” (em si mesmas e no seu interior) e um “lugar” (num espaço maior, a tira, a prancha, etc.): daí que Groensteen fale de uma estruturação espácio-tópica. Isto significa que podemos, por isso, descrever as vinhetas em si (através de um movimento de fragmentação, distribuição, dispersão), ou observar as suas coordenadas em situação (através da sua conjunção, encadeamento, repetição).
A artrologia pode ser vista a dois níveis: a um nível restrito, que se associa às relações mais elementares, lineares, entre cada vinheta (a découpage). A esse nível, é possível estabelecer uma espécie de “gramática” de relações entre cada passagem, ou transição, das vinhetas [veja-se o exercício que Groensteen faz sobre esta prancha do Corentin de Paul de Cuvelier e Jean Van Hamme; as relações podem, todavia, ultrapassar a da vinheta única, como se pode ver no exemplo de Pablo Auladell]
Há também um nível geral, das relações translineares, distantes, entrando aqui a noção de tressage (“entrelaçamento) de Groensteen, que dá conta das relações que as vinhetas podem estabelecer entre si, mesmo in absentia (“na ausência”), isto é, não no espaço de uma mesma prancha ou as duas pranchas de um livro que o olho possa abarcar de um “golpe de vista”, mas que estabelecerão de uma página para outra, fazendo-nos recordar um leit motiv, uma acção, etc. A memória do leitor tem aqui um papel preponderante, o que é um argumento imediato contra a ideia de “passividade mental” na leitura da bd. Os exemplos maiores dados desta complexidade são-nos dados com o famoso episódio “Fearful Symmetry”, de Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons e o álbum Nogegon dos irmãos Schuiten: em ambos os casos, existem uma capicua visual, que faz desses dois textos uma um trabalho de preciosidade e minuciosidade estrutural [aqui, as pranchas centrais do episódio de Watchmen].
Entre estas duas grandes áreas do sistema de banda desenhada (de Groensteen), a artrologia e a espácio-topia, há um modo de interacção dialógica e recursiva. Dialógica pois há “uma associação complexa de instâncias necessárias em conjunto para a existência de um fenómeno” (ou por outras palavras, sem uma dessas áreas, ou “pólos”, não teríamos a banda desenhada). Recursiva, pois são “fenómenos de interretroacção recíprocos entre as instâncias que se interregulam entre si, de modo a que os efeitos e os produtos são ao mesmo tempo causadores e produtores (produzidos)” (isto é, estão tão intricadamente interligados um ao outro que é impossível distinguir o que vem primeiro ou o que é mais importante; são ambos indispensáveis).
A especificidade da banda desenhada vive desta contínua oscilação entre imagens fragmentadas e únicas e a sua estruturação em sequência (e não me cinjo a serem organizadas em pranchas com várias vinhetas, poderá ser apenas uma imagem por página, etc.). Yves Lacroix (citado por Groensteen) resume bem essa especificidade: “a sua imobilidade fundamental, a simultaneidade e o panoptismo obrigatórios das suas unidades, ou dito doutro modo o seu estado serial”. Isto é: 1. as imagens são imóveis; 2. o nosso olho abarca todas as imagens lado a lado em primeiro lugar ao mesmo tempo; 3. depois passa a considerá-las separadamente, como que analisando-as.
Uma nota final: não se falou da narrativa. A narração não me parece ser uma condição absolutamente necessária, se entendermos por essa palavra uma estruturação formal de um número necessário de elementos narratológicos e a obrigatoriedade da existência de todos os elementos correlatos (personagem, espaço, tempo, continuidade diegética, etc.), tudo no seu sentido mais estrito e “clássico”. Porém, se entendermos a narratividade (a qualidade do narrativo) como uma capacidade de organização e de relacionamento de significados gerais da parte do leitor/espectador, ao longo de um intervalo de tempo, e que leve à inclusão de, por exemplo, um livro como o das perspectivas do Monte Fuji, de Hokusai, ou Este céu cheio de terra de Max Tilmann, então aceitarei essa ideia como sempre verificada.